Neste artigo, partilho uma reflexão sobre o papel do astrólogo na sociedade, numa perspetiva crítica e construtiva. É dirigida a todos os praticantes de Astrologia bem como aos seus clientes. No cerne do tema, estão as crenças implícitas de predeterminismo e livre-arbítrio.
Segundo o astrólogo britânico Geoffrey Cornelius, a Astrologia está pouco preparada para ser credibilizada na sociedade, em parte, porque a maioria dos astrólogos não sabe (filosoficamente) o que faz.
Ou seja, pratica a sua arte sem ter uma noção refletida sobre a mesma, caindo não só na persistência de certas crenças erradas como até em falhas éticas. No limite, esta insistência afunda mais a Astrologia, os seus praticantes e clientes do que os beneficia.
Em síntese, segue a minha visão do assunto inspirado nas sábias palavras deste senhor que conheço pessoalmente e cujo trabalho admiro. Estou em crer que esta reflexão é fundamental para uma participação mais consciente e útil da Astrologia na sociedade.
A MÁQUINA DO DESTINO: D90
A “Máquina do Destino” é a crença letal que, desde os tempos de Ptolomeu, tomou conta de muitos praticantes da arte. Segundo esta (que não é da responsabilidade do dito génio), a maior parte dos eventos terrestres são predeterminados por algum tipo de causalidade astral e física (ainda não explicada cientificamente) e que, por conseguinte, é possível prever quase tudo. Chamemos a esta crença D90 – que quer dizer uma crença de predeterminação (Destino) de pelo menos 90 % das coisas que acontecem no mundo e na nossa vida.
Esta crença D90 que a maior parte das pessoas na sociedade abomina, por várias e inteligentes razões, é inconscientemente invocada pelos astrólogos sempre que falam em “previsões”. E, obviamente, isso implica um desejo forte contra o astrólogo e para que falhe – não como um ataque pessoal – mas contra a crença D90 que ele transporta nas suas costas, e que era comum a muitos antigos estudiosos desta arte.
Aliando a crença inconsciente D90 a previsões de eventos negativos (mortes, destruições, fatalidades) o astrólogo fez a cama em que se deitou, ganhando a hostilidade legítima de diversos setores da sociedade, desde a ciência à religião.
Por isso, ainda que com alguma popularidade atualmente, os astrólogos têm pouco crédito na comunidade mais erudita sendo vistos mais como uma espécie a abater ou digna de troça do que propriamente como agentes evolutivos.
No seu inconsciente, pode estar também a lealdade ao sofrimento pelo qual muitos astrólogos antigos passaram por se sentirem algo proscritos na sociedade, em particular, nos últimos 500 anos.
D90: UMA CRENÇA COM PÉS DE BARRO
Efetivamente, a crença D90 tem pés de barro, segundo a própria história da Astrologia e a sua prática. Por duas razões distintas.
A primeira é que a função original das artes divinatórias, incluindo a leitura dos céus, era consultar presságios em relação a determinada ação. Como o início de uma viagem, começo de uma guerra, realização de um casamento, entre outras. Ou seja, não “saber o que vai acontecer” mas saber com que desafios posso contar “se escolher este caminho A”.
Por outras palavras, o livre-arbítrio estava presente, o objetivo era iluminar as escolhas e, portanto, guiar o cliente num caminho mais sábio, saudável e divino. Nesta circunstância, a crença no predeterminismo absoluto era nula, mas podendo andar próximo dos 50 %, variando bastante conforme os contextos.
A segunda razão para a inconsistência da teoria D90 prende-se com a componente da correlação física ou causal entre ciclos planetários e eventos terrestres. Em absoluto, embora existam correlações por identificar como a importância dos planetas nas tempestades solares, a correlação é mental e simbólica.
Por outras palavras, embora haja efeitos gravitacionais consideráveis como no caso da órbita da Lua, o fenómeno astrológico não é explicável em pleno com modelos físicos. E, por isso também, nunca poderá ser provada totalmente no plano estatístico, mesmo que muitos estudos possam ser interessantes.
A Astrologia é explicável a partir do momento em que reconhecemos que o tempo e o espaço são percepções da mente, portanto, relativos e ilusórios, de um ponto de vista objetivo.
Quem já alguma vez praticou Astrologia Horária constatou esta extraordinária realidade: um pensamento, uma ideia, uma vontade podem estar espelhados simbolicamente na linguagem dos arquétipos astrológicos. No limite, até a personagem de um romance poderá ter o seu mapa astrológico sendo possível conhecer os desafios com que se deparará na sua jornada ficcional.
Dizendo isto de outra maneira: o verdadeiro paradigma por detrás do funcionamento da Astrologia é que existe pouca diferença entre a realidade de um pensamento e a realidade da matéria física. E que tempo e espaço são ilusões da mente, daí podermos “brincar” com alguma facilidade com os respetivos símbolos. Isto pode chocar muita gente, mas é bem melhor que o paradigma D90.
UM NOVO PARADIGMA: L90
Uma vez que sob o astrólogo pesou um certo karma da crença D90, inevitavelmente surgiu durante o século XX o seu oposto: a crença do livre-arbítrio quase absoluto, chamemos-lhe o dharma L90. Ou seja, a crença de que construímos em liberdade e por escolha própria pelo menos 90 % da realidade que nos “acontece”.
Lembremo-nos, por exemplo, que no séc. XIX, o astrólogo Alan Leo foi condenado em tribunal por fazer trabalho preditivo. A partir daí, ele mudou a sua trajetória interpretativa para valorizar o livre-arbítrio, influenciando muitas gerações seguintes.
Muita da chamada Astrologia Humanística ou Psicológica tem implícito este princípio. O que é bastante saudável e, provavelmente, será o caminho nas próximas décadas: que o astrólogo reconheça o poder criador da vontade e da mente positiva, sendo a linguagem astrológica apenas um trampolim para a vivência desse potencial pleno.
Esta mensagem muito otimista, espiritual e inspiradora será assim o mote mais facilmente aceite pela sociedade. Ainda que seja uma abordagem excessiva, pouco técnica e ainda menos científica servirá de compensação à crença D90, uma dívida acumulada pelo “sistema” dos astrólogos.
Escusado será dizer que, neste contexto, a palavra “previsão” deixou de fazer sentido sendo quase banida do dicionário astrológico.
Mas será este o ponto de equilíbrio e que permitirá que os astrólogos prestem um melhor serviço ao próximo? Fazendo-o crer que tudo é possível com facilidade e que os seus condicionamentos são menores ou mesmo negligenciáveis? Poderão ser chamados de “astrólogos” ou deveríamos encontrar outra designação?
A VIRTUDE DO MEIO: LD-VAR ou MM
Do meu ponto de vista, como em tudo na vida, será importante que se encontre um meio-termo.
Durante os próximos anos, como referido, penso que a maioria dos astrólogos incorporará inconscientemente o paradigma L90 assumindo-se (como nos últimos 40 anos) como uma comunidade new-age, psico-coach-astrológica, com uma liberdade interpretativa enorme, baseada mais na intuição do que na técnica, mas que poderá ter, mesmo assim, uma função motivadora importante com mensagens de esperança e fé.
Em minoria, estarão aqueles que se aventurarão em territórios perigosos que incluem técnicas mais precisas de interpretação e previsão, à imagem de muita da Astrologia tradicional, mas que carregam um perigoso fardo D90 atrás.
Destes, uns deixar-se-ão consumir nesse magnetismo da ilusão da previsão absoluta, “o lado negro da Força”, arranjando inimigos “invisíveis” que os combatem.
Talvez outros atinjam o tal equilíbrio conseguindo comunicar que o seu verdadeiro paradigma é M=M – Mente equivale a Matéria – o que tem o seu lado positivo que implica a capacidade criadora da realidade – o livre-arbítrio – pela força mental.
Ou seja, na prática, estes últimos astrólogos poderão trabalhar com técnicas preditivas mas chamando-lhe outra coisa: estimativas. Essas probabilidades deverão ter em conta as opções possíveis e deverão ser úteis ao cliente ou à sociedade.
Exemplo: em vez de dizer, vai acontecer-lhe Y deverão dizer : se escolher X estimo uma probabilidade de 80 % de conseguir Y e uma probabilidade de 20% de não conseguir Y, caso adote uma atitude Z.
Esta formulação de diagnóstico apesar de parecer menos segura será mais realista, mais humilde e tenderá paradoxalmente a ser muito mais respeitada pela comunidade não astrológica, por incorporar expressamente o livre-arbítrio.
Idealmente, o astrólogo deverá ter uma noção concreta do quociente entre livre-arbítrio e determinismo que estarão implícitos em determinada questão, dando a entender que é um binómio altamente variável com o contexto. Ainda assim, deverá explorar sempre as melhores oportunidades de ação para o consulente.
Assim com este paradigma MM ou LD VAR (livre-arbítrio e predeterminismo variáveis) estaremos mais aptos a usar o lado luminoso da “Força”, de uma forma útil, prática e livre dos exageros cor-de-rosa (L90) que poderão trazer também muitas desilusões ou do fatalismo (D90) que comportará hostilidade e não é, em si, criador.
CONCLUSÃO
Resumindo: os astrólogos atuais têm vários caminhos possíveis, que poderemos resumir em três grupos. Serem:
CAVALEIROS LUMINOSOS NÃO “JEDIS” – com princípios inconscientes L90 mas por vezes achando D90 e sem sentido crítico sobre isso; pouco técnicos ou precisos, mas funcionando com “boa” intenção e numa base essencialmente psicológica, sem diagnósticos muito concretos ou qualquer tipo de exposição que permita validar os mesmos diagnósticos com alguma objetividade.
CAVALEIROS DO LADO “NEGRO” DA FORÇA – princípios inconscientes D90, em atração pelo abismo do poder ou do ego; vêem-se como os guardiões do conhecimento tradicional, e bom conhecimento técnico que, por vezes, pode soar mágico e assustador pela precisão preditiva ; pouca preocupação ética (esta pode ser também uma fase de teste pela qual quase todos os aspirantes a magos poderão passar ao reconhecer o imenso poder tecnico-preditivo da Astrologia em certos contextos)
CAVALEIROS DO LADO “BRANCO” DA FORÇA: OS JEDIS – princípios conscientes de MM ou LDVAR que são declarados e promovidos nas suas práticas (sobretudo o MM); muito bom domínio técnico das bases tradicionais e também dos conceitos modernos; tentam sempre promover o melhor para os seus clientes / leitores, numa linguagem de opções e probabilidades, em conformidade com certas atitudes; questionam-se sempre, tanto do ponto de vista filosófico, como ético e técnico; tentam sempre melhorar-se como pessoas além do conhecimento astrológico.
Destes últimos, há poucos. Mas entre eles contam-se certamente William Lilly, Dane Rudhyar e Geoffrey Cornelius. Esperemos que mais “Jedis” se possam descobrir neste caminho que requer muito cuidado e inteligência no manuseamento desta “Força” que se chama sistema astrológico.
Um abraço
João Medeiros
Bibliografia Principal:
- A Prática da Astrologia, Dane Rudhyar (1968)
- A Astrologia da Personalidade, Dane Rudhyar (1970)
- Astrologia Cristã, William Lilly (1647)
- Moment of Astrology, Geoffrey Cornelius (2004)
- Tetrabiblos, Ptolomeu (séc. I)
O nosso querido António Rosa já falava sobre determinismo e livre arbitrio. Pode ler o que ele escreveu!
É verdade, Margarida! A dinâmica dele faz uma certa falta. Abraço JM
Bom artigo, grato!
Também podemos considerar a astrologia como o estudo do conjunto de influências que atuam num sujeito, e o modo como este sujeito reage a essas influências. É aqui que se coloca a questão do livre-arbítrio. Ora quanto mais desenvolvido é um ser, maior é a sua quantidade e qualidade de livre-arbítrio.
Consideremos um barco num rio.
Se for um barco a remos, as correntes das águas exercem sobre ele uma grande influência. É o que acontece aos que estão na fase de desenvolvimento em que são predominantemente influenciados pelas emoções e instintos, tanto própios como coletivos.
Se for um barco à vela, são os ventos que mais influenciam. Aqui são as correntes mentais que predominam…
Se for um barco a motor, as influências externas são secundárias. Estes já têm uma mente relativamente bem definida, com ideias bem estruturadas, e podem aceder à intuição superior…
A astrologia já consegue definir em que fase de desenvolvimento se encontra o sujeito?…
Caro Carlos, a sua metáfora é soberba! Concordo em absoluto. Quanto à resposta à sua pergunta: a Astrologia não permite (que eu saiba) saber à priori qual o grau de desenvolvimento de consciência de um indivíduo, apenas com base no seu mapa natal. Pode dar umas pistas boas, mas não mais do que isso. O que me parece é que nas perguntas de Astrologia Horária, em particular, pode ser possível chegar a uma noção muito verdadeira do grau de livre-arbítrio que está em jogo (por exemplo, quando há muito equilíbrio entre argumentos para um lado e para outro, ou com muitas quadraturas/ oposições) …. Um abraço! JM
São minhas questões atuais, muito bom o artigo. Gostei!
Obrigado, Maria Aparecida! Um abraço JM
João! Está de Parabéns gostei muito do seu Trabalho, sou uma Eterna Estudante de Astrologia! conheci Portugal e Amei e tenho Saudades de Antônio Rosa!!